Com a força de trinta bombas atômicas, o grande terremoto que
sacudiu o Haiti destroçou a capital, Porto Príncipe, causou um número
ainda "inimaginável" de mortos, vitimou brasileiros e deixou o país,
já paupérrimo, mais arrasado do que nunca.
ADEUS, FILHA
Lionel Michaud chora em frente ao necrotério de Porto Príncipe, onde caminhões despejaram
centenas de corpos. Entre os mortos está sua filhinha de 10 meses: ela e a mãe morreram
soterradas em casa.
Lionel Michaud chora em frente ao necrotério de Porto Príncipe, onde caminhões despejaram
centenas de corpos. Entre os mortos está sua filhinha de 10 meses: ela e a mãe morreram
soterradas em casa.
Quando o mundo acabou no Haiti, às 4 e 53 da tarde de terça-feira, o mais terrível foi que, por algum tempo, os mortos viveram. Com a força infernal de trinta bombas atômicas, o terremoto aconteceu no pior lugar possível. Seu coração de terrível poder, o epicentro, praticamente coincidiu com as ruas e encostas esquálidas de Porto Príncipe, a capital. Pouca coisa resistiu. Os casebres, os prediozinhos precários, os escassos edifícios mais imponentes. O topo da catedral, com suas duas torres, desapareceu. O arcebispo morreu. O Congresso ruiu, com o presidente do Senado lá dentro. Hospitais, escolas, hotéis. Uma universidade inteira tragou 1 000 viventes. No palácio presidencial, em pomposo estilo francês, foi como se uma foice gigante tivesse ceifado o prédio, na horizontal, e ele se reacomodasse, alguns metros mais abaixo. "Estou andando sobre corpos", disse Elisabeth Préval, a mulher do presidente, depois de escapar do choque mortífero que tudo engolfou. Zilda Arns, uma campeã da humanidade na luta para salvar crianças da desnutrição, não conseguiu escapar, da mesma forma que quase duas dezenas de militares brasileiros da força da ONU no Haiti. O prédio de cinco andares ocupado pelos funcionários civis da ONU também veio abaixo, com mais de 200 pessoas dentro, entre as quais o segundo no comando, o carioca Luiz Carlos da Costa.
Quantos morreram? Talvez 50 000. Ou 100 000. Quem se arriscaria a calcular? "Inimaginável", definiu René Preval, o presidente sem teto – perdeu o palácio e a residência particular –, abrindo os braços, no meio da rua, perplexo. Os vivos vagavam como almas penadas, sem ter casa para onde voltar ou, tendo, sem coragem para entrar nela. Os que iam morrer pediam um socorro que não vinha. Na primeira noite, os gritos eram muitos, constantes, lancinantes. Aos poucos, foram diminuindo. "Hoje, quinta-feira, não escuto mais ninguém", disse a VEJA o coordenador de uma entidade assistencial, Jean Claude Fignole. "Os escombros ficaram em silêncio. Os que continuam vivos estão muito fracos para gritar. Alguns apenas ainda estão com os celulares acesos."
Fotos Logan Abasi/AP; Matthew Macgregor/AP![]() |
FORÇA SOBRENATURAL O palácio presidencial, construído em 1918, antes e depois da tragédia: como uma foice gigante que desfechasse um golpe na horizontal |
Ah, os celulares. Quando a terra tremeu, a luz acabou, a água sumiu e ergueu-se uma nuvem de cimento parecida com a vista em Nova York no 11 de setembro de 2001. As comunicações se evaporaram. Mas, com o mesmo padrão aleatório típico dos terremotos – aqui um prédio intacto, acolá um que parecia Hiroshima bombardeada –, alguns celulares continuaram funcionando. O grande terremoto do Haiti foi transmitido pelo Twitter, em doses de dramática concisão. "O centro virou poeira e escombros", tuitou no primeiro momento Frederic Dupoux. Depois: "Corpos por toda parte, não vi nenhuma ambulância nem nenhum serviço médico em lugar nenhum".
Patrick Farrell, The Miami Herald/AP![]() |
HOLOCAUSTO O corpo abandonado da menina, com as ruínas de uma igreja ao fundo: ninguém sobrou para chorá-la |
Os sobreviventes só tinham as mãos nuas para tentar ajudar os soterrados. Se conseguiam arrancá-los aos escombros, não tinham como transportá-los – as ruas estavam obstruídas por destroços e carros abandonados na hora do pânico. Se os transportassem, não tinham onde socorrê-los: os hospitais estavam em ruínas. Se obtivessem, enfim, algum socorro, faltava tudo. Feridos se alternavam com os que já haviam chegado mortos às poucas e precárias clínicas ainda abertas. Em frente ao necrotério, em total colapso, a mais dantesca das cenas: sobreviventes caminhavam na ponta dos pés, equilibrando-se sobre um tapete de mortos, tentando reconhecer parentes. Nenhum país estaria preparado para enfrentar uma catástrofe do tamanho da que devastou o Haiti – pelas primeiras avaliações da Cruz Vermelha, cerca de 300 000 pessoas precisavam de absolutamente tudo, de abrigo a água e comida. Somando-se todos os afetados pelo desaparecimento do pouquíssimo que tinham, chegava-se a um número dez vezes maior. No total, um terço da população haitiana, uma proporção de flagelados inconcebível até em tempos de guerra.
Habitualmente, o Haiti já vive em estado de emergência. A miséria é endêmica, a agricultura é de subsistência e a principal atividade econômica para as massas parece ser o microcomércio de rua. Descrever o Haiti como o país mais pobre das Américas – e o marco zero da aids também – não dá ideia nem aproximada da realidade. As peculiaridades da história haitiana descortinavam um futuro glorioso, mas redundaram em promessas terrivelmente frustradas. O Haiti foi o único país onde escravos trazidos da África conseguiram fazer uma rebelião bem-sucedida. Eles trabalhavam nas plantações de cana, que, como no Brasil colonial, produziam riqueza para poucos e sofrimento para muitos. A rebelião teve episódios terríveis, com matanças sucessivas dos blancs, os colonos franceses, e inspirou terror em outros países escravocratas. Teve também um herói convulsionado, Toussaint Louverture, que professava ideais libertários e escrevia a Napoleão Bonaparte como "o rei dos negros falando ao rei dos brancos". Ele terminou preso, exilado e morto na França, mas a independência foi alcançada pouco depois, em 1804, por Jean-Jacques Dessalines, que imediatamente se declarou imperador e iniciou uma linhagem de dirigentes desastrosos.
Habitualmente, o Haiti já vive em estado de emergência. A miséria é endêmica, a agricultura é de subsistência e a principal atividade econômica para as massas parece ser o microcomércio de rua. Descrever o Haiti como o país mais pobre das Américas – e o marco zero da aids também – não dá ideia nem aproximada da realidade. As peculiaridades da história haitiana descortinavam um futuro glorioso, mas redundaram em promessas terrivelmente frustradas. O Haiti foi o único país onde escravos trazidos da África conseguiram fazer uma rebelião bem-sucedida. Eles trabalhavam nas plantações de cana, que, como no Brasil colonial, produziam riqueza para poucos e sofrimento para muitos. A rebelião teve episódios terríveis, com matanças sucessivas dos blancs, os colonos franceses, e inspirou terror em outros países escravocratas. Teve também um herói convulsionado, Toussaint Louverture, que professava ideais libertários e escrevia a Napoleão Bonaparte como "o rei dos negros falando ao rei dos brancos". Ele terminou preso, exilado e morto na França, mas a independência foi alcançada pouco depois, em 1804, por Jean-Jacques Dessalines, que imediatamente se declarou imperador e iniciou uma linhagem de dirigentes desastrosos.
Fotos Juan Barreto/AFP e Gerald Herbert/AP![]() |
PRIMEIROS SOCORROS A escavadeira recolhe corpos e socorrista espanhol consegue tirar criança das ruínas: com 70% da cidade destruída e os poucos serviços públicos em colapso completo, tudo é difícil para os sobreviventes |
Fraco, com a economia desorganizada, sem herdar instituições nem criar as suas próprias, o Haiti sofreu intervenções estrangeiras sucessivas e o flagelo da dinastia Duvalier. Papa Doc e depois seu filho, Baby, foram os absurdamente perversos e corruptos ditadores que criaram um reinado de terror baseado nos tonton macoutes, seu esquadrão da morte particular, e em misteriosos poderes ocultos, na tradição do vodu. Governantes ruins, ladrões e insufladores da violência das massas destruíram os sopros de esperança na era pós-Duvalier e empurraram mais haitianos para a única saída, a fuga para o exterior, onde conseguem fazer o básico que seu país lhes nega: estudar e trabalhar, seja nos museus de Nova York, onde parecem formar uma sorridente corporação de guardas, seja nos hospitais do Canadá – há mais médicos haitianos em Montreal do que em Porto Príncipe. A falência geral acabou por produzir a intervenção da Organização das Nações Unidas, último recurso para salvar os haitianos de si mesmos. A missão, honrosa em sua essência, com participação majoritária do Brasil, traduzida no número de baixas sofridas pelo Exército nacional, conseguiu certa estabilização. No Haiti, isso significava um estado ruim, mas menos desastroso do que seria se nada tivesse sido feito. Até que a maior de todas as catástrofes, produzida nas entranhas da terra, aconteceu. Das superstições criadas à sombra do vodu, a mais conhecida é sobre os vivos que trazem os mortos de volta para escravizá-los. São os zumbis. No dia em que o fim do mundo despencou sobre o Haiti, as fronteiras entre vida e morte, como na lenda, se afinaram.
Como tudo o mais, o cemitério principal de Porto Príncipe entrou em colapso. Os corpos insepultos se acumulavam, famílias chegavam a pé carregando seus mortos e não tinham onde deixá-los. Estranhamente, o portão estava intacto. Sobre ele, a inscrição em francês:"Souvennons-nous que tout est poussière". Tudo era mesmo poeira no Haiti.
Juan Barreto/AFP![]() |
PORTO HIROSHIMA Cena de bomba atômica em Porto Príncipe: haitianos não tinham casa para voltar e vagavam pelas ruas, com medo e sem assistência. A lista de carências é alarmante: faltam abrigo, água, luz, comida e remédios para todos |
Juan Barreto/AFP![]() |
O TAPETE DE MORTOS A cena dantesca se repetiu por todo canto: corpos amontoados como lixo, rodeados por moscas. Parentes de desaparecidos equilibravam-se sobre as vítimas em busca de rostos conhecidos |
Diário do desastre
Este é o dramático relato de Diego Escosteguy, o repórter de VEJA
que narra a destruição e o desespero enfrentados pelos haitianos
Fotos Gilberto Tadday![]() |
PARA CONTAR A HISTÓRIA Tragédia nas ruas e escombros da igreja Sacré Coeur (acima), onde estava Zilda Arns, e o seminarista Bourgouin Meltone: "Ela era uma pessoa iluminada" |
"Escrevo este relato no chão de Porto Príncipe, a cidade que acabou e agora recende a morte e sofrimento. À minha frente, está o outrora agradável Hotel Villa Creóle – na verdade, metade dele.
A parte que resta está servindo como ambulatório para tratar feridos do terremoto. O cheiro pútrido dos corpos que se estendem pelas ruas e jazem nos escombros obriga-me a usar uma máscara cirúrgica. Não adianta muito: a náusea é inevitável. A cada cinco ou dez minutos, ouço o barulho dos helicópteros que chegam e se vão – espera-se, aqui embaixo, que carreguem comida e água, tudo de que os haitianos mais precisam neste momento. Esse é um doce som. Há um bem pior, que ressoa desde que cheguei aqui, no começo da manhã: são os gritos agudos de dor que partem do ambulatório e da calçada, onde feridos padecem, sem anestésicos nem esperança, ao lado de voluntários abatidos pela impossibilidade de fazer mais e pela certeza de que nada além da morte aguarda esses infelizes abandonados à própria sorte.
‘Aaaaahhh’, grita uma voz de criança, silenciando todos que estão perto do ambulatório.
Eu e o fotógrafo Gilberto Tadday pousamos de helicóptero num aeroporto inteiramente ocupado pela solidariedade do mundo: havia aviões americanos, franceses, espanhóis, mexicanos. Do lado de fora, o caos. Haitianos gritavam por ajuda, por notícias dos familiares. Em alguns, já se notava raiva – e não mais desespero. As ruelas cinza de poeira e terra são bordejadas por filas indianas de homens, mulheres e crianças em busca de comida, água, remédio. Pela janela do carro, alguns nos pediam ajuda.
Dos prédios desabados, fragmentos de concreto caíam constantamente nas calçadas, tal qual flocos acinzentados de neve, pousando sobre o monturo de tijolos, dejetos e restos humanos nas calçadas. Não é difícil compreender por que já começam a se perceber tumultos nas ruas. No que costumava ser um posto, vimos uma briga por galões de gasolina. A frustração está dando lugar à fúria. Chega-se rápido à violência. ‘Ninguém vem nos ajudar. Precisamos de tudo para sobreviver’, diz, revoltado, Adolph Fanfan, de 25 anos. Ele perdeu um irmão, um tio e uma prima.
Chegamos com dificuldade à perigosa região onde a missionária Zilda Arns morreu. Lá, na tradicional Igreja Sacré Coeur, que desabou quando ela conversava com fiéis, sobraram tijolos, corpos – e uma solitária imagem de Jesus Cristo em frente ao altar. Um esqueleto de telhas vermelhas e algumas colunas de tijolos mantêm em pé a igreja. Dentro, cadeiras brancas de plástico, perfeitamente alinhadas, esperando uma missa que nunca virá. Uma construção menor, atrás da igreja, também desabou. Encontrei quatro voluntários tentando levantar os grossos pedaços de concreto, sem nenhuma ferramenta – e sem sucesso. Perguntei o que procuravam. ‘Cerca de vinte pessoas’, respondeu um deles. A força terrível do cheiro de corpos decompostos paira sobre tudo.
Estava lá o seminarista Bourgouin Meltone, um articulado jovem de 28 anos. Ele conhecia Zilda Arns. ‘Eu conversava com ela aqui’, diz Meltone, olhando para a torre de tijolos. ‘Ela era uma pessoa iluminada.’ O seminarista estava em outra paróquia quando o terremoto começou. O arcebispo Joseph Serge Miot morreu ao lado dele. Conta o haitiano: ‘Corri para cá e ajudei a retirar alguns sobreviventes. Era tarde para ela’.
O que era possível fazer com as mãos, os haitianos já fizeram. ‘Sem equipamentos, não temos como fazer mais nada, mais nada’, diz Tol Polyte Wolking, um estudante de 23 anos. Ele teve sorte. Seu casebre resistiu à força dos tremores. Mas ele ainda procura vítimas na rua onde Zilda Arns morreu. Além da igreja, havia uma moradia para seminaristas e uma escola infantil. Ao nos aproximarmos da escola, Polyte retirou sua camiseta vermelha, molhada de suor, cobriu o nariz com ela e apontou para a pilha cinza de tijolos. ‘Lá’, murmurou o haitiano, falando para si mesmo, ‘eles ainda estão lá dentro’.
Pouco antes de terminar este relato, a terra tremeu mais uma vez. Um haitiano me disse: ‘O senhor tem que sair daqui. O resto do hotel pode desabar’. Levantei-me e fui embora, tentando não olhar para trás."
HAITI o caos depois do desastre
Como num cenário pós-apocalíptico, o Haiti consome-se depois do terremoto. Os fracos se encolhem, os fortes se enfrentam e os mortos alimentam fogueiras humanas. No meio de tudo, cada resgate reacende as esperanças.
Sob as trevas da noite o pavor aumenta. Os raros focos de luz são dos faróis de carros, dos postes de quartéis com geradores e das fogueiras... Assustadoras fogueiras alimentadas por escombros e corpos. Do Hospital-Geral de Porto Príncipe emergem urros de dor de pacientes. Com os primeiros raios de sol chega a notícia do resgate de uma criança com vida e a esperança renasce.
Abarrotado pelo volume colossal de feridos em estado grave, o Hospital-Geral tornou-se o maior centro de amputação de Porto Príncipe. Um lugar de horrores, onde se aguarda a vez de morrer, ao lado de cachorros, lixo e do odor onipresente da gangrena. No pátio do hospital, feridos tentam sobreviver em colchonetes, ao ar livre e sob tendas. Num deles, Widlyn Pierre, uma jovem e bela haitiana, grita de dor.
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Em Porto Príncipe, os vivos dormem nas ruas; os mortos, nos escombros. Os números da catástrofe já parecem não fazer nenhum sentido. Foram 75 000 corpos lançados em fossas, mas quem os contou? Praticamente inexistente, o governo anuncia planos de transferir 400 000 desabrigados da capital para acampamentos organizados nas imediações da cidade destruída. Como? Quando? Por enquanto, dorme-se sob o céu negro e o calor asfixiante do Caribe, sentindo-se o cheiro fétido das fogueiras humanas. São os momentos mais perigosos para a sobrevivência dos haitianos, quando os mais fortes encontram a cumplicidade da noite para atacar os mais fracos.
Brigam por comida, água, remédios – ou mesmo por bonés e óculos velhos, o tipo de farrapo que alguns haitianos ainda possuem. Há troca de socos até por restos dos destroços. Nenhum haitiano parece aceitar que outro tenha mais do que ele, ainda que esse mais se resuma a lixo. Em regiões miseráveis, como o bairro de Delmas, os desabrigados acampados nas praças e ruas improvisaram fogueiras, feitas de tudo o que se pode encontrar: lixo, corpos, pedaços de madeira. Em outras, como Bel Air, a escuridão da noite mistura-se com a poeira dos destroços ainda pairando no ar. O Haiti, que sempre viveu próximo da barbárie, agora se queima por completo nela.
Quem tem parentes ou um fiapo de esperança fora da capital se amontoa em ônibus ou barcos superlotados, num êxodo esfarrapado rumo ao interior. A maioria não tem nada e vaga pela cidade. A sobrevivência agora se dá nas ruas, na grande lixeira na qual se tornou a capital haitiana. Praças viraram favelas, campos de várzea transformaram-se em camas. Os poucos motoristas andam na contramão, buzinam sem motivo. Emergiram duas classes de haitianos: os tendistas, aqueles cidadãos mais afortunados, que conseguiram estender seus pertences em uma lona nas praças, e os demais, que dormem direto no asfalto ou em calçadas. Os tendistas levam vantagem na luta pela sobrevivência. Por concentrarem grandes massas humanas, estão mais protegidos dos ataques de gangues – e se tornam mais visíveis aos voluntários que distribuem água e comida.
Porto Príncipe queima diferente em diferentes lugares. A Praça Boyer, em Pétion-Ville, bairro menos devastado da capital, é um condomínio classe A para os padrões haitianos pós-terremoto. Ali, como em outras praças, há crianças e bebês chorando, filetes de esgoto nas calçadas, dejetos. Há, porém, vendinhas de batata e banana verde, que podem ser compradas por poucos gourdes, a moeda haitiana. Alguma água chega por intermédio de doações internacionais. Num gesto que ilustra a formidável capacidade de resistência do ser humano, um grupo de professores e voluntários criou uma escolinha na praça. Eles cuidam de 270 crianças, dando aulas de francês, matemática e ciências, intercaladas com atividades lúdicas de canto e dança. As crianças sentam-se num chão de pedra para participar das atividades. Muitas têm sede e fome – 39 delas são órfãs. Diz Clarénce Johnny, coordenador da escolinha improvisada: "É uma forma de ocupar a cabeça das crianças e tentar fazer com que elas olhem para frente". Eram 17 horas, e ele estava dando aula em jejum.
As praças do centro da cidade, região onde só há ruínas, oferecem menos regalias aos haitianos. De longe, a Champ de Mars, que fica diante do que restou do Palácio Presidencial, assemelha-se a uma imensa feira de ambulantes, tal a profusão de lonas e barracas coloridas. De perto, é um pestilento amontoado humano. Há crianças tomando banho com água do esgoto, mães prostradas em pedaços de papelão, fezes e urina pelo chão, cachorros e porcos revirando o lixo a céu aberto. Vez ou outra, explodem discussões e brigas – sempre por comida. Noutra praça, em Delmas, Marie Therese tentava proteger Kevensson, sua filha de 6 meses, de uma chuva miúda que atravessou as cortinas de calor. Ela usava as mãos como guarda-chuva, mas sem sucesso: o bebê gritava. Therese estava sentada numa toalha. "É tudo o que me sobrou", ela disse, observando a filha. O que ela esperava para o futuro de Kevensson? "Nada", ela respondeu, os olhos vazios.
Crianças como Kevensson constituem o futuro perdido do Haiti. Não se sabe com exatidão quantas morreram desde o dia 12, mas certamente muitas mais ainda perecerão. Andando pelos escombros da cidade, depara-se com pequeninos corpos, que se confundem com as telhas e os tijolos. Ao lado, perambulam crianças sem família, desprotegidas, vítimas de uma catástrofe que não podem entender. Caminham sem direção aparente, vestindo trapos – a maioria só de camisa, imunda em razão da falta de banho e do acúmulo de poeira dos escombros. John Guerrie Dovillien, um menino mirradinho de 5 anos, vagava pelas ruas de Delmas em busca do pai. Acabou sendo acolhido no pátio de uma igreja evangélica, onde divide colchonete com outros órfãos. Ninguém sabe o que vai acontecer com eles.
A fome e a sede levaram multidões de haitianos a invadir lojas, supermercados, casas. Moralmente, parece existir uma divisão: pegar comida, água ou qualquer coisa para colocar entre o corpo e o mundo devastado onde vivem é aceitável. Quem não faria o mesmo no maior de todos os estados de necessidade? Já saquear com o objetivo de revender é condenável e pode ser punido com a justiça das ruas ou os tiros dos policiais que, aleatoriamente, tentam estender um esgarçado véu de ordem sobre o caos.
Alguns policiais usam lenços ou máscaras no rosto – proteção contra o cheiro que tudo invade e garantia de anonimato. Num supermercado que havia desabado no bairro de Delmas, pessoas desesperadas disputavam os destroços com uma retroescavadeira. Bailavam a dança da fome. Os mais atirados arriscavam-se entrando nos escombros, sob o risco de novos desabamentos, em busca de alimento e água. Segundos depois, a escavadeira retomava seus trabalhos, e os haitianos afastavam-se às pressas, escorregando pela pequena montanha de destroços, como se fossem moscas.
Pelas ruas dos bairros mais pobres, havia poucos socorristas. Moradores pedem ajuda. "Há pessoas vivas lá dentro", era o que mais diziam. Numa dessas ruas, a Monsieur Guiyour, houve na terça-feira à tarde uma operação de resgate coordenada por chineses e mexicanos. Existia a possibilidade de que um haitiano ainda estivesse vivo, soterrado dentro dos restos de um prédio de dois andares. Dois cães farejadores confirmaram a suspeita. "Bem, então nos encontramos amanhã, às 7 horas", comunicou o chefe chinês ao colega mexicano. "Combinado", ele respondeu. A reportagem indagou por que não prosseguir com as buscas. "Deu 6 horas", o mexicano disse, no meio de uma rua vazia e silenciosa. "É uma questão de segurança e organização."
As grandes catástrofes têm um aspecto surreal. O que é mais necessário parece óbvio: água, comida, energia, socorro médico. De repente, alguém pensa: dinheiro também, como a sociedade vai se manter sem ele? E lá foram forças da ONU, incluindo militares brasileiros, resgatar os cofres dos bancos – num momento em que ainda se conseguia resgatar sobreviventes. No Hotel Montana, onde se hospedavam diplomatas e funcionários da ONU, as operações nos escombros prosseguiam sem parar. Depois de sete dias de soterramento, como se emergisse de 2 000 anos sob as ruínas de Pompeia, foi tirada uma senhora de 66 anos, Ena Zizi. Cantava, firme e forte. O pequeno Kiki, que virou o rosto feliz da mais infeliz das tragédias, aguentou oito dias e saiu rindo para a mãe. No pátio de uma das muitas igrejas evangélicas de Delmas, via-se uma multidão de desabrigados que entoava alegremente músicas cantadas em crioulo, o dialeto local, que nada tinham de religiosas. Mulheres descalças dançavam em rodopios, homens erguiam os braços e crianças faziam trenzinhos. A mensagem nada secreta parecia ser: o desejo de vida vence a pulsação da morte.
Num oceano de necessidades absolutas, brotavam pequenos gestos de ajuda. Julien Kossi é do Benin, trabalha para a Unicef e agora está colaborando na distribuição de água para os sobreviventes. "Mesmo que eu possa fazer pouco, vale a pena", ele diz. Na última quarta-feira, Julien foi até a base brasileira em Porto Príncipe, para coletar garrafas de água doadas por uma cervejaria. Depois, seguiu para levá-las a hospitais da cidade. Desde o terremoto, os militares brasileiros distribuíram 125 toneladas de alimentos e 84.000 litros de água. A freira Zelinda Caversan recebeu mantimentos do Exército. Irmã Zelinda mora há dez anos no Haiti e estava ao lado da missionária Zilda Arns quando o terremoto aconteceu.
"A força do impacto jogou-a no chão. Vi quando o concreto caiu em cima dela", relembra a freira. Irmã Zelinda é diretora da Escola João Paulo II, que veio abaixo na tragédia. Quase 1 000 alunos carentes estudavam e comiam lá. Ela e as demais 36 irmãs estão dormindo em barracas improvisadas no pátio da escola, para ajudar a quem podem. "Enquanto eu tiver forças, vou ajudar. Quem sobreviveu é privilegiado."
No Hospital-Geral de Porto Príncipe, Widlyn Pierre continua gritando de dor.
A enfermeira ajoelha-se no colchonete, liga uma lanterna e pede que ela respire. Suando muito, Widlyn segura-se no tronco de uma árvore e emite um longo e agudo uivo. Um bebê sai lentamente de seu ventre. Widlyn sorri. O nome de seu filho é Cristopher – e o Haiti é o seu futuro.
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